Aline acordou atrasada naquele dia. Resmungou com o pai, brigou com a mãe. Onde está o cartão do ônibus?
Saiu à rua meio atrapalhada, toda despenteada, equilibrando os livros embaixo do braço. Depois de um longo dia de trabalho, viria o turno na faculdade.
Aline era servidora pública e cursava jornalismo. Terceira fase já. Gostava de dizer que fazia jornalismo para aprender a digerir as notícias do jornal.
Tomava muito café. Sem açúcar para não sair da dieta. Aliás, era o que a mantinha elétrica o dia inteiro para dar conta do recado. E parte da noite também. Depois tinha de tomar Rivotril para conseguir dormir.
Sua vida era um equilíbrio entre café e Rivotril. Ora a balança pendia para o café, ora para o Rivotril. Normalmente o café ganhava, porque tinha uma insônia que a deixava noites e noites em claro.
Aline chegou então ao trabalho e percebeu que o clima estava estranho. Os colegas não a olharam nos olhos, nem sequer responderam ao seu bom-dia.
Tudo bem, acomodou-se em sua mesa e iniciou o trabalho. Pela pilha de papéis em sua frente, aquele dia seria pesado.
Por volta das dez da manhã o chefe mandou chamá-la.
- Aline, vamos ter de reduzir seu salário. Teu não, de todos os teus colegas.
- Mas como? Por quê?
- Não faça perguntas. É assim que vai ser e pronto.
- Mas eu preciso de uma explicação, eu tenho filho para criar. E meus empréstimos, e minhas obrigações? Já está apertado assim, imagine cortando meu salário.
- Pois é, isso não me importa. Importa é que uma lei foi aprovada na Câmara e a partir de agora todos do teu setor terão redução de salário.
- Mas...
- Isso era tudo que eu tinha para falar. Pode voltar ao seu trabalho.
Aline voltou a sua mesa incrédula. Como faria com tantas contas para pagar? Mantinha o nome limpo num esforço sobre-humano, mas agora não teria jeito. Tudo desandaria.
Naquele noite nem conseguiu ir para a faculdade. Expôs a situação para os pais e prometeu que conseguiria um emprego no tempo do dia que lhe restasse. Mas em qual período? Só se fosse de madrugada!
Pensou em trancar a faculdade e procurar um emprego no período noturno. E se fizesse pães para vender? Brigadeiros? E se criasse um brechó on-line? Poderia mantê-lo nas hora vagas.
A redução foi de 30%. De fato, teve de trancar a faculdade e jogar no ralo o sonho que tinha de ser jornalista. Não conseguiu outro emprego, depois de um ano enviando currículos para os mais diversos lugares. E diziam que deveria dar graças a Deus porque ainda tinha um emprego.
É assim no Brasil. Homens engravatados não se importam com a vida pessoal dos cidadãos e tomam atitudes inconsequentes em nome de um "bem comum". Trabalham por interesse próprio e beneficiam aqueles que bancam suas campanhas.
Porque ano que vem tem eleição e é preciso estar em paz com os donos do dinheiro. Para isso, tiram da boca dos filhos da senzala para desperdiçar nos fartos banquetes da casa-grande.
Raio -X do nosso real, da realidade desse país marcado pela desigualdade e pela exclusão.
ResponderExcluirObrigado pela leitura, Zuleika!
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