23 agosto 2021

Microconto: uma grande jornada em poucas palavras

 


O microconto é um gênero literário que se destaca pela síntese de temas cotidianos, em que se faz mais importante sugerir do que mostrar por completo a mensagem que o autor quer passar.

Estabeleceu-se que o microconto tenha surgido no Brasil a partir da publicação do livro Ah, é?, de Dalton Trevisan, em 1994.

Alguns estudiosos classificam os textos dessa variedade literária em três categorias: nanocontos (até 50 caracteres); microcontos (de 50 a 150 toques); e minicontos (até 300 palavras).

Por conta disso, é comumente associado ao minimalismo.

Escritores consagrados também se aventuraram por essa modalidade literária, como Ernest Hemingway, Franz Kafka e Anton Tchekhov.

O microconto mais conhecido é o do guatemalteco Augusto Monterroso: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá", escrito em 1959.

Foi escrito com apenas 44 toques e expressa um sentimento aterrorizante com a possibilidade de o narrador ter acordado e o pesadelo continuado lá.

Escrever microcontos é um excelente exercício para desenvolver a síntese na emissão das mensagens, sejam escritas ou faladas.

A seguir, alguns microcontos de minha autoria, escritos no ano de 2014.

1
Sentou-se no sofá e tomou o controle remoto da mesinha de centro. Pressionou o botão 'start' para assistir a mais um capítulo de sua vida.

2
Quando o inspetor chegou no local do crime, havia apenas uma gota de sangue no abajur e nenhum corpo.

3
Não conseguiu finalizar o parágrafo que lia. Foi interrompido por um pensamento que tomou toda a sua mente: a liberdade está repleta de duas palavras: não sei. Fechou o livro. Vestiu a jaqueta e saiu. A leitura sempre o tirava de si.

4
Fumava tabaco há anos. Todos os dias. Percebeu que se plantasse em casa sairia mais barato. Assim o fez. A moda pegou. A primeira safra foi boa, a segunda melhor. Na terceira foi preso. Investigação da Polícia Federal. Operação “A Cobra Vai Fumar”. Em sua ficha consta: crime contra o sistema financeiro nacional e sonegação de impostos.

5
Só teve dois desgostos na vida. O primeiro foi nascer. O segundo, seguir vivendo.

6
De tanto deixar passarem à sua frente, acabou sendo passado para trás.

7
Procurava um par de olhos que encontrasse os seus. Mas era cedo. Na mão esquerda, a marca da aliança ainda estava lá.

8
Ih. Acho que é memória.

9
Naquela tarde, a notícia veio pelo celular: qro dvorcio dexe ropas c o port vou p ksa d mmae ñ m procure +. Logo anoiteceu.

10
Primeiro certificou-se de que o cartão seria aprovado. Depois desejou, sorridente: "sejam bem-vindos!"

11
Colocou a respiração sob controle e o bulbo raquidiano do sequestrador na mira. O observador informou-o da distância, direção do vento e temperatura. Tinha tudo para ser um tiro certeiro. Aguardava apenas a ordem superior, que nesta ocasião seria dada pelo governador. A decisão final demorou a chegar. Sentiu o braço esquerdo cansado e levemente trêmulo. Mais alguns instantes e a mensagem veio. "Atire!". O disparo acertou em cheio o olho direito - do refém.

12
Deixou a fatia cair no chão. Olhou desesperada para o pai, pressentindo o castigo vindouro. Sentiu as costas da mão dele arder em sua face. O pai então juntou o pedaço de pão e jogou-o para o cachorro, que dormia ao lado da mesa.

13
Com tanta jogada para fazer, foi comer logo a rainha do oponente.

14
Recebeu herança de família. Perto de um milhão de reais advindos da venda de imóveis em região nobre da cidade. Decidiu que iria investir em viagens. Foi pego com trinta quilos de maconha quando retornava ao Brasil pela Ponte da Amizade.

15
Enterrem-me com o meu celular - e não esqueçam do carregador.

16
A nossa conexão acaba de cair e não mais se restabelecerá.


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